Quando alguma fatalidade atinge
nossas vidas ou vidas de pessoas próximas, tentamos imaginar se poderíamos ter
feito algo diferente, algo que pudesse mudar o curso da tragédia, ou mesmo
tentar lembrar quais os nossos últimos passos ou se poderíamos ter feito outra
rotina, outras ações que resultassem no cancelamento do sinistro. Talvez seja
uma sensação que todos tenham, ou não, cada um sente de uma forma diferente. As
tragédias são sempre acompanhadas de algumas lágrimas, arrependimentos, agradecimentos
nunca ditos, perdão nunca dado, declarações de afeto jamais manifestadas, sentimento
de culpa.
A pior parte da fatalidade é
quando acontece connosco, é quando acreditamos que aquilo nunca acontecerá, que
somos imbatíveis, que somos de aço, que temos uma muralha de gelo nos protegendo
dos caminhantes brancos, mas no fim percebemos que estamos todos prontos para
perder, que estamos ao ponto de sofrer, que no piscar de olhos nossa muralha de
gelo pode derreter.
Falando assim me lembro daquele
triste e desesperador dia 19 de setembro de 2015, quando minha Bia foi atropelada,
seu corpo jogado no chão, as terras nos cabelos, tão pequena, tão indefesa, mas
graças a Deus, nada de tão grave aconteceu, mas naquele dia percebi o que é não
ter chão, o que é ser de palha, o que é ser vulnerável e justamente naquela
madrugada, naquele gelado hospital cheio de doença e morte, fiz os meus passos
naquele sábado, 19 de setembro de 2015.
Fiquei imaginando o que poderia ter feito de
diferente, poderia ter autorizado sua ausência no cursinho, poderia ter saído
com ela para fazer outra coisa, poderia ter deixado o caderno de lado,
poderia ter abraçado mais, falado mais. Ao despedimos naquele sábado, eu nem abracei e nem
disse o quanto amava, foi apenas um “tchau”, pois estava distraído demais lendo
sobre “Ativos Intangíveis”, mal sabia eu que um dos meus maiores bens poderia virar um
intangível. Em casa olhei o relógio e nada dela chegar, às 19:15 horas um carro para na calçado de casa o som do portão me assustou e imaginei que algo já estava acontecendo. Minha irmã entra chorando, falando coisas bem difíceis de
entender, ao sair e verificar o que foi a informação processada tirou o chão de mim, não lembrava nem
do meu nome naquele momento, nem da pessoa que estava dirigindo.
Chegando no local da tragédia
ouvi “Levaram o corpo”- as pessoas deveriam fazer um curso de como informar
eventos ruins à pessoa que sofre de coração- minha pressão subiu, o coração
quase parando a respiração indo..., mas eu precisava continuar de pé, firme,
minha filha não poderia estar morta e graças a Deus não estava.
Ao chegar no hospital fui encaminhado para a sala de emergência, fiquei pensando nos sinais, foi dado algum? Não lembro, ela não merece isso, se acontecer algo com ela...não sei o que fazer, o que vou fazer? Leve-me, permita que ela fique e tantos outros pensamentos soltos e pedidos e lágrimas queimando o rosto, minha mãe chegou um pouco mais tarde, sem chão e com o rosto tenso, triste e mais velha, mas eu já estava no comando e não deixarei ninguém me tirar de perto de Bia, eu sei, egoísmo demais. Minha mãe permitiu que eu ficasse, aquela seria uma das noites mais marcantes da minha vida e dela também. Ela particularizou que imagina o que poderia ter feito de diferente, que rua deveria ter tomado, que atalhos seguidos, eu penso na mesma coisa. Os talhos que ignoramos talvez sejam nossa salvação!
O pensamento de alterar o sábado continua
na minha mente, nas minhas memórias, nos meus sonhos, até a roupa do acidente,
ela já não usa mais! Pessoas já entravam mortas, sim conheci um pouco do inferno. Frases do tipo “leva
para pedra”, “tem família? ”, “a mãe está lá fora”, “esse não tem jeito”,
coisas do tipo. Fico pensando será que os pais daqueles 3 jovens que morreram
naquela sala pensam do mesmo jeito? Pensam que poderiam ter feito algo de
diferente, poderiam não ter dado carro, permitido ir ao baile...não sei, mas
sei que eles perderam muito naquele dia e agradeci a Deus por não perder! Fazer os passos talvez não seja bom, citando o corvo de três olhos, o passado já foi escrito e a tinha está seca...mas que pensamos nisso, pensamos.